Paulo Gustavo e a família que mudou (um pouco) o Brasil

Paulo Gustavo e a família que mudou (um pouco) o Brasil

12 de Maio, 2021 0 Por Pai paratodaaobra

Quando decidi criar o “Pai pra toda a obra”, fi-lo para falar de famílias, de parentalidade, de amor. Nas suas mais variadas formas e expressões. O facto de sermos uma família homoafetiva, cria uma proximidade inevitável de todas estas famílias e, muito em particular, daquelas que pela sua visibilidade, mudaram perspetivas e pontos de vista.

No passado dia 4 de Maio – há pouco mais de uma semana – Paulo Gustavo morreu, devido a complicações motivadas pela COVID-19.

E porque falo disso? Bom, para quem não o conhece, Paulo Gustavo alcançou o estrelato e o reconhecimento nacional e internacional, com uma personagem feminina em “A minha mãe é uma peça”. Começou por ser uma peça de teatro, virou um filme e depois outro filme. Neste texto, do qual é autor o próprio, Paulo interpretava a sua própria mãe, sob o nome de Dona Hermínia. Esta senhora, que representava a Dona Déa (mãe real do actor), era explosiva, “desbocada”, falava alto, dizia tudo o que tinha a dizer, educava de forma rígida e, às vezes, severa. Segundo a própria, a personagem era, realmente, a sua fiel representação. Mas esta mulher também aceitava e acolhia o seu filho homossexual. Também o protegia de qualquer ataque homofóbico, também lhe dava todo o colo do mundo, em todos os momentos.

Com a peça e com o filme, Paulo Gustavo alcançou os melhores resultados de bilheteira de teatro e cinema, na história do Brasil. Seguiram-se inúmeras personagens de igual sucesso.

Mas tem mais, muito mais, a provar que a família e o amor incondicional são sempre o pilar sólido de qualquer sociedade.

Claro que o filho gay de Dona Hermínia, era o próprio Paulo Gustavo que sempre assumiu a sua orientação sexual. E quando alguém que tem este alcance o faz, isso torna-se um ato quase heróico e salvador de muitas pessoas que se sentem sufocadas dentro da sua orientação sexual, especiamente num país como o Brasil que continua a ser, infelizmente, um dos países com maior número de mortes por LGBTfobia (em particular no caso de pessoas trans em que os números são verdadeiramente alarmantes).

Quando falamos de mortes por LGBTfobia, estamos a falar de pessoas que são perseguidas, torturadas, assassinadas, simplesmente por serem quem são. O mesmo é dizer que o são, simplesmente, por existirem.

Uma das maiores ferramentas que existem, de forma comprovada, para acabar com este flagelo, é dar visibilidade a estas pessoas para que não se sintam sós. E foi exatamente isso que Paulo Gustavo deu ao Brasil e ao mundo. Quando uma pessoa com esta visibilidade assume a sua orientação sexual, há milhares (ou talvez milhões) de jovens que percebem que ser LGBTI+ não tem que ser, necessariamente, um impedimento para nada na vida.

Ainda que Paulo Gustavo não se visse ou revisse enquanto ativista, a verdade é que ele foi das pessoas que mais fez no Brasil para a “normalização” das famílias homoafetivas. Ele casou com Thales Bretas, eles tiveram filhos pela via da gestação de substituição (vulgo barriga de aluguer – procedimento legal e reconhecido no estado da Califórnia, nos EUA). Há, claramente, um “antes e depois” de Paulo Gustavo, no Brasil.

Não está tudo resolvido, continua muito por fazer. No Brasil e no mundo. Mas o caminho faz-se caminhando. Um exemplo claro da sua influência foi o fato de a imprensa se referr a Thales como marido de Paulo Gustavo. Nunca antes isto tinha acontecido. Até então, chamavam, em situações idênticas, de companheiro. Depois de serem pais e de se saber (assumido pelos próprios), quem era o filho de quem em termos biológico, a imprensa continuou a referir-se a Gael e Romeu como filhos de ambos.

No dia 11 de Maio, na missa de 7º dia, realizada aos pés do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, o marido discursou livremente.

Para quem nunca teve de lidar com estas questões, talvez pareça pouco. Mas é nestes pequenos gestos que vamos evoluindo, vamos crescendo e, principalmente, vamos sendo integrados numa sociedade que, durante demasiado tempo, nos recusou a nossa existência. Para nós – e para o mundo – são marcos históricos.

Não partiu apenas um artista brilhante. Um dos mais brilhantes da história, na verdade. O seu humor e a sua inteligência emocional e artística eram absolutamente brilhantes. Partiu também um homem que dedicou a sua vida e a sua arte ao combate ao racismo,  às desigualdades sociais, ao combate à LGBTfobia, à defesa de todas as famílias. Tudo, fazendo-nos rir. Muito.

Termino, portanto, com uma das suas últimas frases, em vida: “Rir é um ato de resistência”.

Obrigado, Paulo Gustavo.